quarta-feira, 31 de agosto de 2011

porcelana

S'eu te chamar de meu amor
tu juras que acordas desse
sono profundo?

Os meus cílios deram pra cair
de hora para outra

e tu não estás ao meu lado,
assoprá-los e fazer um pedido.

S'eu te chamar de bailarina graciosa
tu te levantas da cama, lavas o rosto,
molhas os cabelos e vais pra calçada?

Talvez não saibas mas o sol
vive sob uma melancolia
entre pôr o pescoço de fora
ou ficar enrolado dentro
das nuvens: um sol
sem graça.

Meu amor,
minha bailarina graciosa,

sai do quarto, dá um pulinho
à esquina, toma um sorvete.

Sabe aqueles pombos?
Andam cabisbaixos.

Rejeitam de quem passa
migalhas de pão e arroz.

Um dia chegaram aos meus ombros
e perguntaram-me por ti "a menina
de tranças e de olhar triste"

Respondi-lhes
que não és
triste.

Apenas
santinha.

E que as tranças
é imaginação deles.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

paixão

Seis cuecas salvam uma alma.
Sobretudo as cuecas
de hoje em dia:

noventa e seis por cento de algodão
e quatro por cento elastano.

Espero que agora
as minhas formiguinhas
não sumam de madrugada

naquela hora em que o braço
involuntariamente busca a amada.

Elas sempre tiveram como desculpa
as minhas velhas cuecas sem elástico.

Diziam que não existia clima.
Que era de doer minha aparência.

Pelo que já pressinto
hoje tardão da noite

amarei enlouquecido
minhas formiguinhas.

Oxalá elas usem
aquele baby doll.

Aquele
vermelho.

insígnia

Os meus dedos são os meus melhores amigos.
Eram lisos e límpidos e nunca se orgulharam.
Agora ásperos, velhos e tristes e tudo bem.

Não largam das minhas mãos.
Acompanham minhas unhas
no outono e no inverno
sem questionarem
o tempo.

Seguram com altivez
e com a mesma loucura

a asinha da xícara
e o cadarço do tênis.

Os meus dedos são os meus únicos amigos.
Conhecem meu pensamento antes da unha roída.
Já viraram tantas chaves e doeram-lhes as juntas.

Nunca se gabaram
das suas falanges.

Da plasticidade dos ossinhos.
Dos seus ângulos e diretrizes.

Os meus dedos não me puseram contra a parede
à espera de um anel de aço cirúrgico ou de ouro.

Passaram muito tempo colados
uns aos outros sem ironia
e sem fracasso.

Os meus dedos não duelaram.
Não se sangraram à toa,

salvo sob momentos
de tensão em que
nem eu mesmo
compreendia
seus vãos
e a água
da chuva
escapando.

Também foram eles no outro dia
que me ensinaram a fazer concha
com as duas mãos e me levaram
à boca a mesma água da chuva.

Os meus dedos são os meus senhores.
Apontaram na cara de muitos canalhas a desonra.
Outras vezes apontaram para o céu o sol se pondo.

Os meus dedos são o pai que não tive.
Desde cedo é como se eles soubessem.

E cresceram comigo
e nunca me pediram luvas.

Os meus dedos nunca tremeram,
exceto aquele tempo de frenesi 
em que meu coração derretido
veio até eles.

E eles supondo minha dor
tocaram em vez de blues
um samba.

Um samba de roda,
banquete e festejos.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

a doçura do tristonho

Antes que eu volte à leitura,
permita-me admirar as suas costas nuas.

Um dia desenharei uma árvore
e escreverei nomes

da sua nuca passando
por toda sua espinha
e costelas;

e pedirei, sorrindo
e brincando, para
que você me diga
que árvore plantei
que nomes escrevi.

Não sei se você ouvira falar,
mas no meu tempo de anjinho

havia essa brincadeira delicada,
esse jogo sensual,

de desenhar coisas
e escrever nomes
nas costas nuas
da amada.

Em centenas de meninas
desenhei o jardim botânico

e nenhuma delas cresceu
sequer uma florzinha
na varanda.

Fiquei apenas com os nomes.
Uma longa extensão de areia de praia.

Inevitavelmente vêm as ondas
e também levam os nomes.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

relance

Consigo te ver por dentro.
Embora teu perfume
seja enlouquecedor
porque é breve.

E tenho que me segurar por fora
(portão, árvore)

para que teu perfume
não me estrague a vista.

Há dentro de ti uma casa
com janelas fechadas.

Nunca te disse
que me basta
uma lágrima.

A minha lágrima
contra a tua vidraça
amolece todas as trancas.

Também nunca te disse
que é inútil lágrima

quando as janelas
já foram levadas
pelo vento.

Alguém nos dirá um dia:
"no alto da montanha
o vento não existe
e quem ama vive
dentro das tocas
do abismo"

Enquanto esse dia não chega
continuo te vendo por dentro.

E o teu perfume
é bárbaro.

domingo, 21 de agosto de 2011

o amante pródigo

Darei a ti um poema sem vinho
e sem lucidez excessiva.

Um poema sem buscas,
sem transes e sem pensamentos.

Darei a ti um poema caído sobre o peito
na calada da noite quando faço
brilhar minha espada
diante do meu olho
de vidro.

Um poema que não explique a causa do silêncio.
Um poema que se cale ao som da primeira sílaba.

Darei a ti o que temo e o que creio
sem forçar de ti entendimento
ou cumplicidade.

Ainda não ando sobre as águas.
Mas já levito sobre as nuvens.

É um pulo criar chuva
saltando de nuvem
em nuvem

e encher o mar de sonhos
e encher de peixes
nossos corações.

Enquanto tu suspiras
o meu barco à deriva
contra rochedos
afunda.

soul

Perdi o traquejo em escrever versos românticos.
Os últimos enlouqueceram as andorinhas.

Muitas delas enforcaram-se usando
os cadarços dos meus tênis sujos.

Perdi o tato em conquistar mulheres
com a voz doce e os olhos míopes.

A maioria delas preferiu a loucura de uma balada
ao cântico do blues dentro da minha vitrola.

Pobre deu,
mísero de mim.

Perdi a veleidade, a quimera,
o sonho e a malícia: agora

sou um traste só,
um homem puro.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

elos

Às vezes confundo o mar
e todas as suas algas

com a sombra da nuvem 
e todas as suas faces.

É natural perder o juízo
sobretudo um poeta
que trabalha na rua
e mora num ovo.

Contudo, baby,
não é hora de fugires.

Pois aquilo que mais prezo
(costumo chamar de alma)
continua intacta sob mil
dobras.

A lamúria da cabocla na margem
lavando túnicas de imperadores

nada difere do meu canto torpe,
difuso, esperando o último dia
no meu quarto.

A cabocla vive presa aos devaneios.
Daí a sua melancolia e também a minha.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

luxúria

Veste aquele teu short jeans minúsculo
e vai até a praça. Estarei no banco
no terceiro atrás da banca
de jornal.

Não digas: "ui, menino"
Dize:  "ai, cavalão"

É isto que sou,
um cavalão.

Morderei teu braço
(não morderei outra coisa
porque é cedo e tem criança
brincando de skate e patins)

Tu não sabes da minha loucura de celibatário.
Dentro do meu baú guardo filhos órfãos.

Não esqueci o presente
que tu me impuseste:

um frasco de perfume
e duas rosas vermelhas.

Enquanto tu lanças o olhar sobre a minha oferenda
eu te mordo agora o que não podia há dois minutos.

A praça ficou deserta.
Pula ao meu colo.

Deixa-me trincar tuas orelhas
e beijar tua nuca: eu sou um cavalão
e cavalão que se preza come milho
lambuzando o pescoço da amada.

Nunca repitas "ui, menino" A partir de hoje,
somente: "ai, cavalão" É isto que sou,
um cavalão.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

fome e sede

Meu coração é o mesmo de sempre.
Sem um centímetro a mais de artéria
nem uma gota de sangue à toa.

Nada de multiplicidade, sombras, fantasmas,
mudas de pele entre rochas e gravetos.

Eu nunca fui outros.
Eu nunca cruzei pontes
e fiz fogo em outras margens.

Sempre, sempre, sempre os mesmos olhos
e os mesmos passos dentro da minha alma.

A minha alma é palpável.
Muito mais vertiginosa
que o tecido do corpo.

Desde criança quando os versos eram escritos
sem mãos e sem palavras naquelas tardes inteiras
no jardim, quintal, cozinha, salas, quarto, calçadas
esquecendo de comer e de beber
temia ser o que sou hoje.

E eu escrevia versos
em silêncio e no olhar.

Coisa alguma mudou em minha volta.
As coisas são as mesmas coisas.
Os ancestrais são os mesmos.

Nenhum pavor diferente
nem cor estranha
de arco-íris.

A minha alma não cresceu, não estreitou,
não chegou a verdades nem desvendou
o segredo do suspiro.

Ainda que sem mãos e sem palavras
minha alma se vale do vácuo
do pacote de café aberto.

Fecho os olhos ao ser atingido
e outras coisas revelam-se.

A alma, no entanto, é a mesma.
A minha alma é a mesma.

Sem um centímetro a mais de artéria
nem uma gota de sangue sem destino.

domingo, 14 de agosto de 2011

magia

Esqueci como se deita sobre o colo de quem se ama
e treme os olhos admirando o brilho das estrelas.

Creio que somente os sapos e suas sapinhas
ainda nutrem dentro da alma essa loucura.

Porque de fato é loucura.
Vai que desaba uma estrela
dentro do olho do apaixonado.

Como haverá de nascer o dia
(com suas batalhas e seus medos)
ora sombra e ora fresta
debaixo da porta.

O apaixonado para sempre será outro
a carregar um brilho falso de cadáver.

Porque as estrelas quando morrem
escrevem versos no espaço
e iludem.

Não esqueci esse clima de morte
e de festejo quando deitado

no colo de quem se ama
a cada intervalo de beijo

vem a terrível dúvida
do amor que se sonha
e do amor que já foge.

Os humanos são apenas tímidos arautos
de um sentimento nobre e exclusivo
dos sapos e das suas sapinhas.

Porque um dia esses sapos
e essas doces sapinhas
foram príncipes
e princesas.

Conheceram de perto os degraus do palácio
e agora, anfíbios, cantam enfeitiçados
boiando na água escura do pântano.

sábado, 13 de agosto de 2011

para meu filho Vinicius.


Filho, não precisas quebrar teu cofrinho.
Guarda teus centavos para tua mocidade
no dia em que teu coração arder
por uma menina.

Nesse dia, então, manda ver teu porquinho
contra a parede e junta cada moeda.

Leva tua garota para o cinema.
Beija-a e experimenta a pipoca da boca dela.

Teu velho pai não se importa com presentes:
cuecas, perfumes, camisas polos,
celular, radinho de pilha.

Os chocolates que ontem trouxeste
ainda agora adoçam minha alma,
e estamos conversados.

Deixa em paz teu porquinho
com aquele ar de falastrão.

Um dia, como já te disse,
não o poupes do destino.

Quebra-o, junta as moedas,
compra um buquê de rosas

e convida tua princesa
para o shopping.

Faze-o antes que pequenos gaviões
sempre à espreita o façam.

O teu velho pai estará por perto
pra saber dos detalhes: da euforia
e do encanto e da desilusão futura.

A solidão e o desengano
também são prazerosos.

Que pai sou eu.
Que tolices estou a dizer
a uma criança de nove anos.

Esquece tudo e comecemos do princípio:
filho, quebra teu cofrinho e estrangula teu porquinho.

Nem que seja pra gente gastar todo o tesouro
com refrigerantes e jogos de videogame.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

viajante

Hoje salvou-se uma alma.
Limpei o quarto como nunca:

computador, teclado, piso,
livros, ventilador,

mudei colcha
e fronhas.

A sensação é a mesma
quando se aprende a pescar

e em seguida tem nas mãos
um fabuloso peixe
dando pulos
e pernadas.

Sequer vi uma formiguinha pra contar estória.
E olha que sempre debaixo da cama
e atrás do guarda-roupa havia
uma aldeia delas em torno
da fogueira.

Somente a minha xícara sobre a estante
continua sorrindo com as suas fissuras
na circunferência.

Amo-a,
amo-a tanto.

o bom vento de agosto

No meu braço há um sinal.
Mudou de tamanho com o tempo.

Mas tenho a lembrança dele
desde que abri os olhos
no berçário.

E ao abrir o olho direito
surpreendi uma enfermeira
lavando esse sinal com éter e iodo.

Parece uma sombra de uma nuvem
sobre a água parada de um rio triste.

Quem não tentaria apagar tal sinal.
Primeiro a enfermeira, depois a madrinha,
todas as namoradas e por último eu próprio
após perceber a ilusão do presságio
de nascença.

Em breve farei uma tatuagem
encobrindo o que um dia
fora uma nuvem apática
sobre um rio turvo.

D. Quixote com sua lança
e aquele olhar de louco,
esta a tatuagem.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

topada

Ao tropeçar não olhe para trás:
calçada, pedra, graveto, chiclete,
tampinha de refrigerante,
uma baleia morta.

Continue firme e forte,
altivo e fulgurante

como se tivesse
dinheiro no bolso

e uma carta de amor
debaixo da manga.

domingo, 7 de agosto de 2011

êxtase

Há dias se amontoam roupas sujas
e eu só lavei as cuecas,
mas lavei-as com sabonete
e amaciante fofo.

De tão tenras e cheirosas
entraram pela janela do banheiro
duas borboletas e uma andorinha.

As borboletas (platônicas)
fecharam os olhos e viajaram no idílio
sobre o varal, enquanto a andorinha
beijou enlouquecida cada detalhe
dos fios de algodão.

sábado, 6 de agosto de 2011

a densa quimera

Eu sou um rato e os ratos não amam:
copulam dentro das suas tocas
em meio a queijos e vinhos.

Diga-me o que é o amor.
Antes que eu gaste todos os centavos
e me drogue até a alma e morra debaixo da ponte.

Os ratos como eu gostam de amanhecer
com o rosto na lama e um buraco no peito.

Não me venha com suspiros
e piedade dos meus olhos fundos.

É que dentro deles não existe um rio.
Mas um mar de salina e areia cortante.

Eu que fiz a minha toca e plantei as migalhas.
Eu que elevei a solidão ao posto de destaque
entre meus objetos e os meus delírios.

Diga-me o que é o amor.
Antes que eu vista meu jeans surrado
e bata a porta com força contra minhas formiguinhas.

(elas sempre me acompanham
embora ultimamente eu tenha matado
centenas delas) .

Diga-me o que é o amor.
Sou um rato mas ouço bem.

Não julgo os pesares das borboletas
tampouco das andorinhas.

A minha selva é vasta, sombria,
mas vejo que há cores
no jardim vizinho.

Diga-me o que é o amor.
Diga-me sem apelos.

Sem fúria
e sem que imagine
sê-lo maior que outros.

Diga-me o que é o amor.
Por favor, sem palavras.

Sem versos
e sem música.

Sou um rato e como tal é muito difícil,
diria até, impossível me enganarem.

Sou um rato e tenho um faro apurado.
Sinto que você está usando aquele perfume.

Não me responsabilizo pela mordida na sua nuca.
Esqueça. Não me diga coisa alguma.
Adentre na minha toca.

Sirva-se do meu queijo
e sirva-se do meu vinho.