quinta-feira, 26 de maio de 2011

zumbido

O próximo verso
o poema seguinte

me aproximam do que sou
me confundem com outro.

Quando me ocorre o arrependimento
eu sorrio porque uma coisa eu sei:
vida sem poesia
é fingimento.

E todas as coisas feias que fiz nesse mundo
(invasões, furtos, mentiras) foram um dia
matéria prima e suculenta

do verso presente
do futuro poema

então eu sorrio eu sorrio bastante
porque uma coisa eu sei:
vida sem poesia
é fingimento.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

apocalipse e aurora

Quando eu estiver bem velhinho
bem velhinho mesmo
estarei só os ossinhos
só os ossinhos

terei muito cuidado
na hora de chorar

senão as lágrimas levam
a sobra de pele
do rosto

e ao andar na rua
certamente vou me segurando
pelas árvores das calçadas

pedindo a deus que não chova
que o vento não me derrube
não carregue minhas calças

não me faça
passar vergonha
na frente das meninas
do colégio

mas mesmo que caia uma tempestade
mas mesmo velhinho e só os ossinhos

se por sorte eu der fé uma flor
sozinha num canteiro de praça

eu vou até lá, eu beijo essa flor
eu arranco para mim, eu planto
no meu coraçãozinho enrugado

só terei que ter ainda mais cuidado
porque as lágrimas, seu moço
podem arrastar de vez a pele
do meu rosto cansado
de escrever versos

mas que importa
estarei velhinho
só os ossinhos

ninguém me verá na janela
nem as nuvens nem mesmo
as andorinhas

estarei velhinho, seu moço
velhinho, velhinho

só os ossinhos
só os ossinhos

terça-feira, 24 de maio de 2011

a saudade é degustativa

Você sabe como preparar uma galinha à cabidela.
Antes do divórcio deveria ter roubado a receita.

O segredo não está no tempero depois da galinha morta, isso eu sei.
O segredo talvez esteja no jeito que você cuida das suas galinhas.

Todas elas usam lacinho no pescoço
e guizos nos tornozelos.

De noite dançam música flamenca
e só dormem após duas taças de licor.

Quando morrem
elas morrem felizes.

Deveria ter roubado essas galinhas
enquanto você fazia minhas malas.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

entardecer

Beba o meu café na minha xícara.
Beba no canto em que escosto a boca.

A única doença que tenho
é o tremor contagiante
dos meus lábios.

Experimente a pele
da minha xícara.

A única doença que ela tem
é uma pequena fissura

juntamente com outra
forma um lindo sorriso
na sua circunferência.

um malte

Ontem sem motivo aparente
o meu coração apertou-se

apertou-se tanto
que tive medo

e coloquei sobre o peito
a mão em um gesto
de carinho.

Se eu tivesse tido um enfarte
você estaria tão distante

não teria ouvido comigo
aquela música de Norah Jones.

domingo, 22 de maio de 2011

reforma

Os passarinhos devem estar desorientados.
Podaram a árvore e não lhes avisaram.
Também era a minha predileta.

Quando a lua cheia nela batia
um dos galhos entrava pela janela.

Entendia o sinal,
pulava da varanda.

Lá no alto da copa
a lua me contava
como fora seu dia.

Sobretudo da sua última briga
com o dragão de são jorge.

É um amor impossível.
Mas eu  nunca lhe disse.

A lua cheia é sensível
igual a mulher grávida.

Aliás, a lua cheia
é uma mulher grávida.

Já sabendo disso
eu levava no bolso
chocolates e pitangas.

Ficávamos até o amanhecer ela fazendo tricô
eu rabiscando uns versos e sempre havia
um passarinho acordado fingindo
que dormia.

sábado, 21 de maio de 2011

o bom moço

A nossa solidão é um esmero.
Fazemos cachos nas antenas das formigas.
Assopramos livros velhos e limpamos o ventilador.

Talvez tenha sido eu o culpado
por te apresentar às formigas do quarto.

Por explicar com detalhes
como separar os livros da estante
sem distração.

Como passar a flanela
nas hélices do ventilador
com ele ainda ligado.

Tu aprendeste rápido
e com tanto zelo.

Sempre que entras no meu quarto as formigas te cercam.
Os livros parecem tremer, páginas se abrem, batem asas.
O ventilador diz que está gripado vive esquecido e só.

Loucura, confesso.
Tudo para te chamar atenção.

E tu corres, abraças formigas,
beijas livros, acalentas o ventilador.

"meu deus, o que fiz
com essa menina"

a última flor

Durante minha ausência
você abriu tantas portas

que é impossível voltar
pelo mesmo caminho
para a mesma casa.

Minha diversão agora
é ver minha sombra
noutras calçadas

ora bebendo água da chuva
ora bronzeando o pescoço.

Seu pecado foi abrir tantas portas ao mesmo tempo:
reina uma confusão de brisas, cheiros, folhas secas.

Eu que não sou bobo fujo da sua rua
sempre que vou comprar pão.

Ainda tenho medo que a sua porta aberta me convença
que tudo mudou que é outro momento que a vida é bela.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

coral de freiras

Depois dos estigmas
marcarem a alma

é em vão
a peleja

mesmo que lutes
e te rebeles.

Que importa o sonho
se de noite a fome
é tanta e a batalha
infame.

Agarra-te à névoa
e não confundas

lágrimas das estrelas
com os respingos
das andorinhas.

As estrelas são sinceras
e morrem silenciosas.

As andorinhas quando choram
fingem, mas não me digas:

preferes uma estrela distante
a uma andorinha felpuda
entre os dentes?

quinta-feira, 19 de maio de 2011

o eterno retorno também é uma ilusão

Não encontro as pegadas de ontem.
Apesar de sair deixando miolos de pão pelo caminho.

As vidraças todas estão fechadas.
Nenhum passarinho adentrou silenciosamente.

Formiguinhas matei as últimas dentro do açucareiro.
Não é agradável alimentar uma amizade
só à base de açúcar.

Não entendo como sumiram as pegadas de ontem.
E eu estava tão bem. Sorrindo com tudo que via.

O que me resta então é abrir todas as janelas.
Chamar os pássaros com minha flauta doce
e ressuscitar as formiguinhas beijando-lhes
as bocas pequeninas e fantasiosas.

banquete

Largado na cama
fazendo sombras
com os dedos
na parede

penso em muitas coisas
como, por exemplo,

coçar as costas
usando seus cílios.

Hoje já fui à varanda levitando.
Aparei as unhas com a faca de cortar pão.

Isso tudo com os braços cruzados para trás
e os olhos fechados.

Existe um animalzinho cuja sombra
não consigo fazer com os dedos:
O rinoceronte de dois chifres.

Elefantes, girafas, crocodilos, sapos e cachorrinhos
em dois minutos estão todos brincando na parede.

O rinoceronte de dois chifres é especial.
Não consigo mesmo.

Chego perto mas aquele chifre menor é um estorvo.
Sempre quebro meu mindinho.

romance

Debaixo do arco-íris a terra é boa
para plantar jasmins.

Mas cansei de ir só
e voltar sozinho.

Acaba de cair uma estrela
dentro do seu quarto e ela
saiu deslizando de ponta
até os seus chinelos.

Veja, ainda está lá
(e brilhando) parece
que os seus chinelos
agora têm companhia.

terça-feira, 17 de maio de 2011

valsa

Eu não faria
absolutamente
nada.

Deixaria que falasse, falasse, falasse
e eu ouviria, ouviria, ouviria, ouviria.

Têm mais coisas dentro da sua alma
que você nem imagina a beleza.

Mas confesso que o seu riso
entre o olhar sério é lindo.

E eu não faria
absolutamente
nada.

Deixaria que sorrisse, sorrisse
e eu voaria, voaria, voaria.

Acho que devemos cantar juntos.
Não ligue aquele canário enciumado.

Já vai chover, relampejar.
Um raio é o bastante.

Vamos enterrar no quintal dos seus avós
o passarinho dentro da caixa de sapato?

Depois  a gente filosofa
sobre a morte e sobre o amor.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

relógio

A minha farsa é verdadeira.
Custou-me uma vida.

Mais outra
sem paradeiro.

Se você procurar debaixo do travesseiro
tem uma flor (roubada, mas uma flor) .

de volta à cela

Não é bom cortar o dedo e sujar a parede.
A porta do guarda-roupa é o correto.

Faze então um desenho
(planície, montanha)
que se confunda
com a tua tristeza.

Quando eu chegar do trabalho
entenderei o recado
e serei forte.

Cortarei a mão direita.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

divagando

Sonhar com alguém desconhecido
é um claro sinal de solidão aguda.

Incrível é que o vestido dela
parecia tão real tocando meu nariz.

O perfume era daquele tipo de mulher dos sonhos.
Conheço bem minhas neuras e os meus castelos.

O perfume continua no quarto.

Minhas botas enrugam-se
contraindo o abdome,

não querem perder
a fragrância.

Minhas botas têm focinho de cachorro.
Um ótimo faro.

Agora é a vez das formigas paralisarem.
Cada uma olha para o alto e pensam que é pipoca.

terça-feira, 10 de maio de 2011

nove anos

Beije minha mão
e durma, filho.

Amanhã o seu dia
não será igual

nem ao meu dia
nem ao dia dos
pássaros.

Não pense porque viu um beija-flor bebendo água
amanhã ele terá a mesma sede e virá de novo
à sua varanda.

Os beija-flores ensinam aos seus pequenos
fugirem do ninho cedo e nunca saberemos
se era jovem ou ancião aquele que bebeu
toda a água com açúcar e depois limpou
o bico na toalha xadrez.

Beije minha mão
e não se esqueça,
filho

de ser feliz toda noite
antes de dormir (esse
é o segredo)

domingo, 8 de maio de 2011

paremos por aqui

As minhas lágrimas nesse momento
misturam-se a um vinho
e há outra garrafa
na geladeira.

Manuel Bandeira tinha amigos
e era um brincalhão.

Eu sou triste feito uma taça
cheia, meia ou vazia.

Sou triste mesmo
e ponto e fim.

Já viu um homem chorando, baby?
Um homem que é quase outro ente?

O manjar dos deuses
é a solidão do poeta.

Não deseje para você esse frio
esse afogamento enquanto
golfinhos dançam
e sorriem.

Vou pegar a outra garrafa na geladeira,
com licença (aproveite e veja se da sua
janela há alguma nuvem parada e triste)

sábado, 7 de maio de 2011

há versos que não posso te mostrar

Estou bem
assim, triste.
Não me abrace.

Deixe-me largado,
sentado na cama.

Nunca estive tão bem na minha vida:
sem anjos dentro de casa
e com o demônio fora.

Juro para você que a chuva no asfalto
agora molha meu peito (e isso é bom) .

quinta-feira, 5 de maio de 2011

o doce dark

Fui brincar na chuva
colhendo flores e pulando poças.

Acordei com os olhos inchados,
o nariz escorrendo, tossindo muito.

Não demora retorno ao jardim
(logo após esse chazinho)

Dessa vez as rosas colhidas
não guardarei no bolso nem dentro dos livros.

Farei aviãozinho com as pétalas
e lançarei da varanda no decote das meninas.

terça-feira, 3 de maio de 2011

o grito

Se acordares de madrugada
com o ronronar dos travesseiros

é a tua barba rala
fazendo neles
cócegas
e afagos.

Volta a dormir, jovem senhor
mas fica longe das fronhas:

dentro ainda é forte
o cheiro da falecida.